Duelos à pistola: Selecção Natural com código de honra

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Suponha o caro leitor o seguinte cenário.

O senhor, acompanhado da sua elegante esposa, entra numa qualquer botequim com o único fito de saciar a falta de cafeína. Educadamente, cumprimenta os clientes presentes e faz o pedido. Ainda os cafés não chegaram ao balcão e já uma entre as maiores bestas a quem acabou de apertar a mão enaltece a viva voz a qualidade dos glúteos da sua excelsa esposa. Você ignora fervendo, mas o energúmeno não desarma e ainda sugere que ele e a sua cara-metade poderiam ter uma noite de amor tórrido, fazendo uso desbragado de uma linguagem coloquial que a ouvidos civilizados se assemelha a zurros asininos.

Uma de duas consequências o imbecil há-de conseguir, todavia nenhuma das quais amenizará o infame atentado ao seu respeito e honra:

a) o senhor joga-se ferozmente ao animal com unhas, dentes e o que conseguir agarrar pelo caminho, podendo o caso até terminar mal para si se o zurrino for de compleição atlética ou tiver colegas de manada por perto;

b) o senhor, equipado com a sua couraça de indiferença, dá à besta o valor que merece que é claramente menor do que o de um cão sarnento. Paga os dois cafés e sai com a sua mulher pela mão, dando-lhe uma carícia provocadora para todos verem. No entanto, e não conseguindo exorcizar toda a fúria que conseguiu conter no primeiro acto, invoca pragas divinas ou escreve um texto rancoroso procurando em vão algum alívio.

Como facilmente se percebe nenhuma destas duas hipóteses seria satisfatória para si. O mal estava feito e não haveria bem que o compensasse.

Numa outra época, num outro século mais civilizado, o ofendido leitor poderia exigir reparação dos danos à sua moral por maneio de pólvora e chumbo, homem – o senhor – contra besta – o imbecil que o insultou a sua donzela e a si, até à morte. O mesmo será dizer que desafiaria solene e justamente o seu antagonista para um nobre duelo à pistola. Há coisa mais civilizada? Em contraponto com insultos e provocações públicas, um duelo é, na verdade, o equivalente de atirar pérolas a porcos. Depois de se terem escolhido armas e padrinhos, o senhor encontrar-se-ia com o tinhoso que proferiu tão graves impropérios e defrontá-lo-ia, sem ninguém de permeio que interferisse e onde o físico do animal ombrearia em equilíbrio com o intelecto e o sangue frio do distinto cavalheiro, você, sempre conduzidos por um fino mas severo código de conduta. Mais uma vez, duas hipóteses surgem:

a) o senhor armado da razão e da justiça contra a ignomínia limpa o sebo ao infeliz mafarrico;

b) apesar de tudo vivemos num universo estranho e você falece às mãos do estafermo.

Ora aqui, tanto numa situação como noutra, obtemos resultados que, nunca sendo satisfatórios para as duas partes contenciosas em simultâneo, serão ao menos palpáveis e factuais. No caso de você aniquilar o animal pode dizer-se que o senhor só por si seria um instrumento da selecção natural, eliminando da cadeia evolutiva genes nefastos e labregos – aliás, com a proibição dos duelos até à morte perdemos o único meio venerável de refinar a pool genética. No bizarro caso de no final quem ficar com a bala no bucho ser você, não desanime. Morreria um herói; morreria defendendo a sua honra e a da sua mulher e nada está acima dessa palavra puída. Pense também que com esse desfecho os filhos dela terão melhor pontaria o que, sendo obviamente uma vantagem evolutiva, fará de si um nobre mártir sacrificado em detrimento de uma geração menos desajeitada.

PS: É claro que para um duelo ser considerado válido não é necessário que nenhum dos contendores faleça, mas assim qual seria a piada?

Imagem: O Duelo de Yevgeny Onegin e Vladimir Lensky, Ilya Repin, 1899

Tudo merece a segunda oportunidade

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O meu fascínio por cachimbos não é novidade para ninguém, especialmente nos últimos meses. Bem, o simples fascínio de qualquer pessoa por cachimbos já de si não é novidade nenhuma; seja apreciador da arte ou não, nunca um cachimbo espalha indiferença. Voltando ao meu fascínio em particular, desde que comecei esta intrépida exploração o arregalar de olhos à mera visão de qualquer cachimbo tornou-se um acto perfeitamente costumeiro. Passei horas da minha vida a debulhar catálogos on-line de cachimbos que, estando dentro do meu orçamento (de 0 a 60€) e sendo agradáveis à vista (todos), colocava numa lista que ia crescendo desmesuradamente até chegar à enormidade de precisar de 2385 € para riscar todos os itens. Desanimei.

Isto continuou com mais ou menos intensidade até que num belo dia, e com o orçamento ligeiramente alargado, me lancei com o o entusiasmo de uma criança numa loja de doces em busca de um cachimbo para me oferecer de prenda de Natal. Revi a tal lista e todos os cachimbos que nela figuravam. Encontrei mais uns quantos, mas todavia, e muito estranhamente, não gostava suficientemente de nenhum para o escolher em detrimento dos outros. Desanimei outra vez.

Teria “enjoado” os cachimbos? Porventura teria eu sofrido uma overdose visual de cachimbos, uma saturação tal que já não me conseguiria decidir por nenhum? Muito provavelmente. Em mim esse é um fenómeno bem documentado. Mas não. Havia mais qualquer coisa ali.

Voltei atrás no tempo, àquele sábado fresco de verão em que por 10 € comprei 3 cachimbos 3 numa feira de velharias. Todos com bom aspecto, todos impecavelmente limpos, mas com sinais de uso. Então e se eu fosse dar uma volta no Olx? pensei eu. E se comprasse uma data de cachimbos velhos, usados, esfarrapados, coisas medonhas, verdadeiros atentados à higiene pública e à minha própria saúde, e os pusesse novos, lustrosos, limpos, a queimar o mais doce dos Virgínias ou o mais picante dos Latakias outra vez, como se fosse a primeira? Continuei eu a pensar.

Não é caso raro um cachimbo sobreviver ao dono. As madeiras de urze e cerejeira – as mais comuns entre o nobre utensílio – são das mais resistentes deste lado do Universo conhecido, e bem tratadas podem durar dezenas, se não centenas, de anos de boca em boca e de tabaco em tabaco. Por que haveria de gastar eu 50 ou 80 euros num só cachimbo feito certamente por uma máquina computorizada, podendo gastar 10 em 3, com a virtude acrescida de ficar com um objecto já usado; um objecto que já foi amado por alguém, que já foi íntimo de alguém, que partilhou com alguém os mais negros pensamentos e as mais brilhantes alegrias, que já viu melhores dias mas pode pode ver muitos mais e muito melhores. Os cachimbos são objectos pessoais; e pessoais vem de pessoa, individuo, ser humano. O que faltava naquele meu desânimo durante a escolha de um cachimbo era precisamente essa ligação humana. Nenhum cachimbo de 50 euros parece ter sido feito por uma pessoa. Não me pergunte porquê pois não saberia responder-lhe, mas não parece de facto feito por uma pessoa, apesar de ser lindíssimo e bem construído. Já 50 euros em cachimbos na feira da ladra é uma sala cheia, uma cacofonia de histórias de gente que provavelmente passou a vida com aquelas coisas velhas e gastas no meio dos dentes. Nunca conhecerei as histórias, mas não preciso. Os cachimbos, eles próprios, conhecem-nas e mostram-no. A minha ligação com aqueles antigos donos é ténue, tem uma haste de plástico mordido e um corpo de madeira meio queimada. Mas existe.

Lixa de vários grãos, cera, álcool, acetona, escovilhões (às carradas), uma rectificadora manual com acessórios de polir, raspador, lã de aço, Scotch Brite, Super Cola, limas, tintura para cabedal de vários tons e algum jeitinho para a bricolage é tudo o que é preciso para devolver a dignidade a muita pechincha que anda por aí nas feiras da ladra (reais ou internéticas). Parece muita coisa, mas não é mais do que o comum mortal que goste de sujar as mão tem na garagem. E o motivo é nobre.

Imagem: Man Smoking a Pipe, James McNeill Whistler, 1859

Lição de História e Vocabulário

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“São 6 horas da manhã. Há uma asfixiante intemporalidade neste tempo distendido por uma macerante expectativa que não cabe entre paredes. A leitura de um comunicado interrompe a cadência irritante da música marcial. Os indícios tornam-se mais nítidos. Colocam-se no campo dos bons auspícios. As Forças Armadas que ocupam os estúdios do RCP acusam o recrutamento abusivo da DGS e da Legião Portuguesa. O alvoroço redobra-me a ansiedade. A iminência de ver florir por fora a Primavera que sempre trouxe dentro do meu amor à liberdade morde-me o coração como uma alegria insuportável. Joguei sempre no impossível. E agora? Só os medíocres sabem o que fazer com a vitória. Pois haverá duas. A vitória que dará aos medíocres a oportunidade de estragarem o impossível, na frustrada demonstração de que é possível a felicidade dos povos. É este, de resto, o destino das revoluções. Quanto à minha vitória, ela oferece-me o ensejo de, no impossível possibilitado, desmascarar esta pretensão dos medíocres, com os olhos postos em impossíveis a haver. Por outras palavras: não me imagino a frequentar as aulas de qualquer revolução vitoriosa. (…)

São 6 e 45. As marchas militares são cortadas pelo emissor do Comando das FA, e inicia-se uma transmissão de canções proibidas. A minha comoção atinge o auge quando ouço cantar um poema em que desabafei o meu nojo pelos ratos da censura salazarista: «Queixa das Almas Jovens Censuradas». Empolgo-me com essa mediocridade do meu planfletarismo juvenil. Eu, que, dobrado o cabo das íntimas tempestades que no poeta rasgam o imo da verdadeira criação, aborreço esses exibicionismos metrificados da justiça social. Mas há uma estética efémera da exaltação colectiva que eleva à categoria de belo aquilo que, na ordem das coisas em repouso, ofende o bom gosto. E tudo isto é exaltante, porque em tudo isto se desprende para mim o canto livre de Afrodite que, em ondas de ouro, se propaga na cidade.

Abro a janela. Rompe a estrela da manhã.”

– Natália Correia, Não percas a rosa/Ó liberdade, brancura do relâmpago

Imagem: An Experiment on a Bird in an Air Pump, Joseph Wright of Derby, 1768

E agora para algo completamente diferente: PS no Governo

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Não é em qualquer lugar que um partido perde as eleições e chega ao Governo. Há que admirar este tipo de coisas. É como um eclipse milenar ou um alinhamento planetário. E tal como nesses casos, há que esperar que não seja o fim do mundo.

Não sou de direita, note-se. Considero-me bastante esquerdalho, todavia estas coisas confundem-me. Quando uma equipa de futebol termina o campeonato em primeiro lugar é suposto ser coroada campeã; é isso que se espera e mais nada. É assim que deve ser. Neste caso a equipa que terminou em primeiro – apesar da curta distância para o segundo – foi também coroada campeã para uma semana depois lhe ser retirado o título porque provavelmente já não vai jogar lá muito bem na próxima época. Basicamente foi isto que aconteceu, e para uma cabecinha tonta como a minha (e da vastíssima maioria dos portugueses), este paralelismo ajuda a compreender a situação.

Ora, este tipo de jigajogas só é possível num país onde o diálogo político começa e acaba nestas alianças de circunstância durante períodos eleitorais. Nunca se vê em Portugal um partido de esquerda aplaudir uma medida sugerida por um partido de direita, mesmo que o bom senso e a lógica nos diga que sim senhor, os reaças desta vez têm razão. O mesmo funciona ao contrário, obviamente, e ainda acrescentando acusações de demagogia.

É claro que as propostas da esquerda serão sempre demagógicas, porque o próprio socialismo assenta as suas bases em pressupostos demagógicos – antes de mais porque supõe que todo o socialista é o socialista perfeito, detentor de todos os valores morais e socialistas perfeitos, mas na verdade o que há mais para aí são socialistas bardamerdas.

E é claro também que as propostas de direita vão sempre na direcção da austeridade para com os trabalhadores e subserviência europeia simplesmente porque são uma cabada de betinhos que nunca sujaram as mãos com essa estranha coisa que é o trabalho. Ainda assim, a parte da subserviência europeia não estou certo que tenham inteira culpa – são contas de um rosário que começou a ser rezado ainda por Mário Soares, enquanto Presidente da República.

Ora, quero com isto tudo dizer que realmente só num país onde grassa a política com telhados de vidro e com muita pedra no chão é possível que estas coisas aconteçam. Se não fossem os políticos do faz de conta que são talvez encontrassem pontos comuns de interesse nacional, para o bem de todos debaixo desta bandeira, e tivéssemos um Governo de diálogo e entendimento ao invés de chegarmos ao triste ponto de previsibilidade republicana: o PSD e CDS nunca conseguiriam aprovar nada, mas nada, em Assembleia até eventualmente caírem do pedestal.

Nada na política portuguesa me surpreende. Até vou mais longe e aposto que muito brevemente vamos começar a ouvir falar outra vez de José Sócrates como candidato a um poleiro qualquer.

Todavia, e apesar de o cenário político português ser uma espécie de cruzamento trágico entre os Monty Python e David Lynch, vai ser giro ver como António Costa se vai manobrar por entre os dedos de Jerónimo e Catarina. Vai vai.

Imagem: Dorfpolitiker , Wilhelm Leibl, 1877

Benvindo ao deserto da televisão

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Ao que parece ontem foi o Dia Mundial da Televisão. Como se não bastasse haver um dia mundial para cada coisa com mais ou menos valor conhecida pelo Homem, ainda há um dia mundial do artefacto eletrónico que mais contribui para a deseducação dos portugueses.

Cresci com a televisão, como qualquer pessoa da minha idade. Não valerá a pena desfilar aqui as séries preferidas, desde Alf a Duarte e Companhia, vale a pena sim afirmar que se tivesse um filho com idade para ver televisão sozinho eu não o deixaria. Excetuando, obviamente os canais “de cabo”, mas esses não fazem parte da televisão como entidade, e sim de uma classe temática própria. Cresci com a televisão, dizia, e ao que parece acabei um individuo perfeitamente normal (por enquanto). Temo que não aconteça o mesmo às gerações que estão a crescer com a televisão neste momento.

Hoje em dia a televisão é pobre. Mostra-nos muita pele e pouca cabecinha, muito drama e pouco conteúdo. Muita parra para tão pouca uva. A julgar pelos programas das tardes de fim de semana parece que as únicas pessoas em frente à televisão são reformados, ou campesinos, ou gente com uma índole a roçar a patologia psicomotora; a julgar pelos programas das manhãs de semana também. Não quero com isto aferir que só as pessoas de um certo nível cultural gostam desses programas, mas o que é facto é que, para quem não tem nenhum serviço por cabo, não há alternativas. Já não há filmes, nem para crianças nem para adultos, não há documentários, nem sequer programas que elevem um bocadinho mais a cultura geral em vez do conhecimento sobre o último abanar de ancas da Rosinha ou a última tatuagem daquele fulano todo jeitoso a cantar em pleibéque mas que afinal é trolha.

Há a grande exceção, obviamente. A 2. Ou RTP2 ou lá como se chama nos dias que correm. Em tempos quiseram acabar com ela e graças a todos os santos falharam no intento. Deus no-la guarde assim mesmo, com desporto nacional a rodos (ultrapassando em serviço o que a própria Sportv oferece) e com séries e filmes que ninguém mais veria em lado nenhum, mas caramba, dêem-me todas as produções independentes da Galiza aos Urais que eu troco sem ver por qualquer programa de domingo dos outros canais.

O grande problema de facto é a falta de variedade na televisão nacional. Por vezes chego a pensar que o diretor de programas é o mesmo já que a programação e o seu teor pouco difere. Porra, até os intervalos de cada telejornal parece que estão sincronizados. Se calhar estão mesmo, em favor dos diretores-sombra dos canais, as agências de publicidade, mas não queria chegar a tanto.

O que importa mesmo reter no meio disto tudo é que o Dia Mundial da Televisão foi ontem. E como o outro, quando a acenderam fui para o quarto ler um livro. Já o aparelho em si é deveras elegante.

Imagem: Will Sillin, The Rum Desert, Wadi Um Ishrin, 2010

The Gift – 20 anos de paixão

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Ao ouvir a música Changes, uma das minhas preferidas, e que o Spotify teve a fineza de colocar no topo da reprodução aleatória, percebo que os The Gift sobreviveram ao teste do tempo, no que ao meu gosto musical diz respeito. Explicando: oiço hoje o fenomenal Vinyl com a mesma pica que ouvia quando saiu nos idos 1997, quando me apaixonei por uma menina de covinhas nas bochechas e um vozeirão que me impressionou tanto como trovão quanto como veludo. Ainda hoje, quase 20 anos depois do primeiro OK! continua a tocar em recantos do meu sistema límbico como muito poucas coisas tocaram. Os sacanas. Aquelas musicas, a maioria pelo menos, entram-me pelos ouvidos e enchem-me tanto o peito que quase nem respiro. Há umas em que não respiro mesmo com medo até de perder qualquer acorde ou palavra. Levam-me de volta a um certo e determinado concerto no Teatro Garcia Resende em Évora, aquando da digressão do soberbo Film, em que não conseguindo suster aquilo com que Sónia Tavares e companhia me enchiam a alma fui impelido sabedeusporquefeitiçaria a subir ao palco. Sentei-me de pernas cruzadas em frente ao suporte do microfone e vi o resto do concerto dali, embevecido, dançando platonicamente nas palavras da Sónia enquanto cantava “and it feels good, and it’s so warm having those eyes playing with me, myself and I“. Sim, ela cantou isto a olhar para mim, legitimando portanto em qualquer parte do mundo e em qualquer cultura a minha paixoneta. Daí para frente cada vez que a oiço, a ela e aos divinais macambúzios que lhe dão música, a minha alma fica assim, de perna cruzada, embevecida, de peito cheio de qualquer coisa que nem sei bem o que é. Mas é muito bom. Muito bom mesmo.

Obrigado Sónia, Nuno, John e Miguel, por 20 anos disto. Parabéns também. Um grande bem-hajam.

Islamic State of Mind – Vive la France!

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Nietzsche matou Deus. Infelizmente não fez o mesmo com Alá. Com este Alá em particular, entenda-se, o Alá odioso, bélico, vingativo. Este Alá pode ser grande em tamanho, e ter tentáculos da Síria a Paris, mas é tão pequenino em sabedoria como uma ratazana pestilenta. Basta pensar que só por ter escrito a frase anterior posso muito bem ser alvo de uma fatwa porque devo ter violado a sharia umas quantas vezes; quer isto dizer, para os mais desentendidos na língua sarracena, que mereço a morte porque disse o que me vai na alma. Mas preste atenção o sunita leitor, provavelmente ainda dou outra trancada nessa tal de sharia. Vá apontando.

Este Alá é de facto uma ratazana pestilenta e nasceu simplesmente para acabar com a raça dos homens livres, nada a ver portanto com o seu parente afastado de nome semelhante que professava a fé pela misericórdia e amor ao próximo. Lembro que nós – ainda que agnóstico tenho que me incluir no mesmo saco – também já fomos assim como eles. Morte aos infiéis, Jerusalém é nossa, Maomé é um borra botas e mais não sei quê. O que nos safou enquanto civilização foi a morte de Deus e o nascimento da Razão e do Homem;

(Não deixa de ser paradoxal ter sido Nietzsche o inventor do bombista suicida com a frase “não sou homem, sou dinamite”, ahaha, que engraçado que eu sou)

por outro lado, estes sunitas do Estado Islâmico, ou ISIS, ou Daesh – parece que a cada semana lhe dão um nome diferente, mas chamemos-lhe Tozé agora, vá, – estes sunitas do Tozé, dizia, ficaram presos numa bolha temporal, onde estoirar com crucifixos ainda está na moda e um apedrejamento é como o picnicão do Tony Carreira todos os dias. Estão com atraso de 600 anos, os gajos, e parece que gostam.

(Vá, agora um parágrafo sério que a raiva já acalmou)

Claro, é uma luta ideológica que nenhum europeu vivo talvez compreenda na sua totalidade, exceptuando talvez a malta do West Ham United e do Millwall FC, que se odeiam militantemente há mais de cem anos. Felizmente já não estamos nesse patamar de fervor religioso e barbárie cultural. Não queremos saber se o nosso vizinho do primeiro esquerdo reza 3 vezes por dia virado para Meca ou vai à missa católica todos os domingos, ou se o senhor que vem contar a água está em período de ramadão ou é Ministro da Igreja Pastoral da Virgem Santíssima Bem Aparecida Nas Palhas Deitada com o Menino. Não queremos saber de Deus, nem de Alá, do bom ou do mau, e quem quiser saber de algum desses Gajos são contas do seu próprio rosário – ou fios do seu musallah – e ninguém tem nada a ver com isso. Nós, europeus do século XXI, europeus comuns, daqueles que vão à bola, ou jantar com a namorada, ou a um concerto numa qualquer sexta à noite, queremos viver como vivemos: numa Europa de liberdade conquistada ao longo de séculos de luta contra doutrinas religiosas e dogmas filosóficos; sobrevivente de guerras mundiais, de atrocidades avassaladoras e generosidades comoventes; de fronteiras livres e braços abertos para o resto do planeta. Ora e estes tipos do Tozé querem atacar isso porque não compreendem a nossa forma humanista e liberal de pensar tal como nós não compreendemos a maneira ultra-religiosa que rege as suas atitudes e discursos.

Podiam ter atacado parlamentos, bases militares, sedes de companhias petrolíferas, podiam ter atacado alguma coisa com significado estratégico para a guerra do Médio Oriente, mas não. Resolveram atacar o comum europeu enquanto se divertia e vivia uma noite tranquila. Esse comum europeu, hedonista e liberal, até pode ter perdido o contacto com a espiritualidade e cultura ancestral do seu povo, e até podemos de alguma maneira condenar – uma palavra muito forte, mas adiante – ou lamentar esse facto, mas o que eu não vejo é como raio é que balas de AK47 e cintos de explosivos vão fazer com que o comum europeu volte a essa espiritualidade e cultura histórica.

Imagem: O Triunfo da Morte, Pieter Brueghel, c. 1562 (para ver em pormenor é clicar na imagem. Veja que é bonito.)

De tesouros encontrados em lugares estranhos

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Dizia eu num post ali mais em baixo, e frisava sublinhando num outro logo a seguir, que era extremamente difícil comprar um bom tabaco inglês em Portugal, o que, pensando bem, muita estranheza me causa, já que somos frequentemente invadidos por britânicos muito para lá da meia idade – a altura em que pelos cânones sociais vigentes se pode e deve fumar cachimbo. O que eu não sabia era que afinal é tão fácil arranjar bom tabaco inglês para cachimbo que a verdadeira estranheza surge agora de braço dado com o assombro e o espanto. Passemos à história, então.

Num dado dia de trabalho da semana passada, ia eu todo pimpão corredor afora quando ao passar por dois colegas meus envolvidos numa qualquer busca por um qualquer utensílio de antanho numa dada gaveta, o meu olhar foi capturado por uma familiar forma redonda. Não conheci o rótulo nem logótipo, mas por um segundo estuguei o passo pensando “uma lata de tabaco de cachimbo? Não pode…” e embrenhei-me entre os meus colegas usando a questão “Quésta merda?” como “Com licença, meus caros, deixem-me alcançar este objecto estranho e saciar a minha curiosidade”. Um deles prontamente me responde “podes ficar com isso que é meu, está aí há anos e ia mandá-lo pró lixo”. Agarro na dita lata à espera de ouvir o chocalhar de porcas, parafusos, anilhas e outra quinquilharia avulsa, mas não. Nem um som se soltou da lata que, apesar de estar toda amassada e deslavada, ostentava o seguinte rótulo ainda com réstias de uma realeza há muito perdida:

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Pipe tobacco? Really? Mas quem é que foi a besta que andou aos pontapés a isto? Ninguém, responde o outro, este gajo é que não sabia abrir isso e até apertou a lata num torno. Ora bem, grandes técnicos de manutenção aeronáutica, não haja duvida. Admoestando o ígnaro, abri a torturada lata e inalei. O impacto foi o mesmo de quando abri a lata de Old Dublin mas com outra ordem de magnitude. Chiça, que isto deve ser um ganda material, disse eu sem saber muito bem como justificar a minha declaração. Estava seco e quebradiço como areia do Mojave, mas exalava uma ordem simples: fuma-me!

Então levei-o para casa. Tirei-o com muito cuidado da lata e do invólucro de papel e coloquei-o numa tigela – sem bater nem mexer muito para não quebrar demasiado a palha cheirosa. Passou a noite com um pano húmido por cima. No outro dia, já com grande parte dele bem hidratado e nada quebradiço, dei-lhe a volta para que os flocos mais seco também se humedecessem e assim ficou até à noite, quando uma parte dele ardeu num dos meus cachimbos.

Hoje já vou na quarta cachimbada e posso dizer com toda a certeza: grande tabaco. Apesar dos anos passados muito longe do acondicionamento ideal, e depois de rehidratado, está – imagino eu – como novo. Acende bem, queima uniformemente, não morde a língua e o sabor é o mesmo do princípio ao fim do fornilho: corpanzudo que chegue, com o “ardor” oriental e uma certa cremosidade que me surpreende. Mais bruto que o Old Dublin mas igualmente prazeiroso. Um verdadeiro achado, portanto.

Então, como dizia Almeida, o Garret, fumemos!

Imagem: Eduard von Grützner, Falstaff am Tisch mit Weinkrug und Zinnbecher, 1910

Para alguns colegas meus Voltaire foi o gajo que inventou a pilha eléctrica

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Igualdade: começa e termina na cor do uniforme; para além disso, o nível profissional atribuído pela empresa e número de empregado ditam o respeito que se merece.

Fraternidade: somos todos muito amigos até alguém executar com sucesso um trabalho sobre o qual não teve “formação” com quem o executa há 20 anos. A partir daí perde o acesso a qualquer tipo de ajuda ou opinião técnica.

Liberdade: é total, conquanto não se execute os trabalhos mais rápido do que o tempo estimado para os fazer, nem se usem processos e métodos novos para o efeito. Os métodos e as ferramentas de suporte existem há 30 anos e é assim que se deve continuar.

(suspiro)

Assisto todo o santo dia à morte lenta dos mais básicos valores morais. Uma degeneração carcinogénica, infecciosa mesmo, onde os elementos infectados investem grande parte do seu tempo a infectar elementos mais saudáveis com ideias erradas e prerrogativas mesquinhas, ao ponto de esses elementos já nem conseguirem distinguir amigo de inimigo, nem dever de direito. Um dos problemas levantados por essa postura é que o tempo gasto a disseminar a discórdia e a calanzice devia ser passado a trabalhar porque é para isso que são pagos; outro dos problemas é que quem mais espalha esse ódio são precisamente pessoas que, pela sua idade e tempo na empresa, deviam dar um exemplo digno de ser seguido; o último problema é que efectivamente os seus exemplos acabam por ser seguidos por abéculas de espírito fraco que, das duas uma, ou se recusam a pensar pelas próprias cabecinhas, ou o acto de trabalhar nunca fez parte dos seus planos (apesar de, repito, serem pagos para o fazer).

Quem os ouve falar, sem conhecer as personagens nem profundamente o seu ecossistema, achará porventura que realmente são peças fundamentais na empresa, que se fartam de trabalhar e transpirar todos os dias por um ordenado miserável e talvez até beijem o logótipo na camisola quando entram na secção. Pois, mas não. Sem conhecer as personagens nem profundamente o seu ecossistema era impossível saber que todos os dias colocam valentes pedregulhos nas engrenagens, que roubam ideias uns aos outros para poderem aparecer em fotografias bacocas, que trabalham o suficiente, ou muito menos, para fazer o “ponto” diário – e nem mais um minuto – e que esse trabalho dificilmente lhes causa qualquer transpiração. E não, os ordenados não são miseráveis. Quem os ouve falar não os leva presos, mas quem os vir em acção é capaz de chamar o pelotão de fuzilamento.

Depois, oiço essas mesmas pessoas, que pensam/agem como se fizessem um favor à empresa todos os dias só por passarem no torniquete, queixarem-se dos salários e que não são aumentados há não sei quantos anos, e dos direitos que foram perdendo com a privatização, e o Governo e porque chove, e porque faz sol, e et cetera e tal.

Opá, vão mas é trabalhar!

Nota: Claro que isto é uma generalização em jeito de desabafo. Também há verdadeiros revolucionários que lutam contra estas coisas. E têm ganho muitas batalhas.

Imagem: A Morte de Sócrates, Jacques-Louis David, 1787

Peterson Old Dublin (ceci n’est pas une critique)

Peterson_Old_Dublin_Pipe_Tobacco1Antes de mais vale a pena ressalvar a dificuldade em comprar uma mistura inglesa não aromática dentro deste rectângulo à beira mar plantado. A menos que o leitor vá a uma tabacaria especializada, tipo Casa Havaneza, por exemplo, digo-lhe que não será no quiosque da esquina nem na estação de serviço que encontrará esses pitéus. Ao que parece o fumador de cachimbo português só fuma tabacos aromatizados (mais ou menos) artificialmente. Só. É evidente que não há nada de errado em fumar aromáticos, principalmente dentro de casa e em ameno convívio, porém gostava de comprar coisas como Dunhill 965 ou Three Nuns com a facilidade que compro um Sail Black ou qualquer Borkum Riff. Adiante.

Precisamente da Casa Havaneza trouxeram-me de encomenda o Peterson Old Dublin, segundo o qual a senhora da loja jurava a pés juntos que era aromático e que não existia tal coisa como tabaco de cachimbo não aromático. Coitada. Obviamente nunca abriu uma lata do dito cujo e depois uma outra de Original Black Vanilla para saber a diferença. A culpa não é só dela: é também de quem a deixa trabalhar numa loja, que se quer especializada, sem formação. A tradição dos mestres tabaqueiros, da qual a supracitada loja se autroproclama parte sobrevivente, dita que quem está atrás do balcão saiba aconselhar o cliente mediante as suas preferências e desejos, e para isso não pode apenas saber o preço com IVA dos tabacos e charutos expostos. Tem que saber bem mais que isso e ser bem mais que uma simples, ainda que atenciosa, empregada de balcão. Mais uma vez, adiante.

O Peterson Old Dublin é caracterizado por diversos outréns como mistura tipicamente inglesa, composto de Latakia cipriota, Golden Virgínia e Orientais Turcos, com um fumo fresco, leve e picante. Um bom tabaco, dizem, para quem quer deixar os aromáticos e explorar as misturas mais fortes e complexas. Além disso tem excelentes críticas no site Tobacco Reviews, a bíblia comunitária do tabaco de cachimbo. Todavia o abrir da lata foi chocante. Habituado que estou aos tabacos aromatizados de quiosque, o cheiro do Old Dublin pareceu-me horrível. Caramba, é mesmo só tabaco! Cheirei-o outra vez, desconfiado. Sim, é mesmo só tabaco. Contudo não é de todo o tabaco que vem num cigarro. É punjente, claro, mas há doçura ali. E especiarias também. E mais qualquer coisa que o meu olfacto ainda pouco treinado não consegue identificar. Então é isto a que chamam de “fabuloso aroma de uma mistura de Virgínias, Orientais e Latakia“? Pronto, está bem. Fumêmo-lo então. E sabe que mais? Não tenho fumado outra coisa.

A fumada é igualmente chocante mas no sentido inverso: é doce e suave. Sente-se que se está a fumar tabaco e não uma sobremesa; é encorpado mas não o suficiente para se mastigar nem deixar algum travo amargo na língua. Não morde, mas sentem-se as especiarias dos orientais. Imagino que aquela silhueta de sabor denso seja o Latakia mas não sei precisar e só me surge de quando em vez. Acende bem e arde até ao fim sem pegar fogo ao cachimbo, nem mesmo ao maçarocas. Já me disseram que cheira a eucalipto ardido, mas ainda não dei por nada. Em suma, é um belíssimo tabaco. Se o cachimbeiro leitor quiser deixar os aromáticos e passar para o chamado tabaco de homem, o caminho (um dos caminhos, na verdade) é pelo Peterson Old Dublin.

P.S.: O departamento gráfico da Peterson devia arder no inferno por ter trocado esta lata por aquela que encima o post. Morram. Pim!