Suponha o caro leitor o seguinte cenário.
O senhor, acompanhado da sua elegante esposa, entra numa qualquer botequim com o único fito de saciar a falta de cafeína. Educadamente, cumprimenta os clientes presentes e faz o pedido. Ainda os cafés não chegaram ao balcão e já uma entre as maiores bestas a quem acabou de apertar a mão enaltece a viva voz a qualidade dos glúteos da sua excelsa esposa. Você ignora fervendo, mas o energúmeno não desarma e ainda sugere que ele e a sua cara-metade poderiam ter uma noite de amor tórrido, fazendo uso desbragado de uma linguagem coloquial que a ouvidos civilizados se assemelha a zurros asininos.
Uma de duas consequências o imbecil há-de conseguir, todavia nenhuma das quais amenizará o infame atentado ao seu respeito e honra:
a) o senhor joga-se ferozmente ao animal com unhas, dentes e o que conseguir agarrar pelo caminho, podendo o caso até terminar mal para si se o zurrino for de compleição atlética ou tiver colegas de manada por perto;
b) o senhor, equipado com a sua couraça de indiferença, dá à besta o valor que merece que é claramente menor do que o de um cão sarnento. Paga os dois cafés e sai com a sua mulher pela mão, dando-lhe uma carícia provocadora para todos verem. No entanto, e não conseguindo exorcizar toda a fúria que conseguiu conter no primeiro acto, invoca pragas divinas ou escreve um texto rancoroso procurando em vão algum alívio.
Como facilmente se percebe nenhuma destas duas hipóteses seria satisfatória para si. O mal estava feito e não haveria bem que o compensasse.
Numa outra época, num outro século mais civilizado, o ofendido leitor poderia exigir reparação dos danos à sua moral por maneio de pólvora e chumbo, homem – o senhor – contra besta – o imbecil que o insultou a sua donzela e a si, até à morte. O mesmo será dizer que desafiaria solene e justamente o seu antagonista para um nobre duelo à pistola. Há coisa mais civilizada? Em contraponto com insultos e provocações públicas, um duelo é, na verdade, o equivalente de atirar pérolas a porcos. Depois de se terem escolhido armas e padrinhos, o senhor encontrar-se-ia com o tinhoso que proferiu tão graves impropérios e defrontá-lo-ia, sem ninguém de permeio que interferisse e onde o físico do animal ombrearia em equilíbrio com o intelecto e o sangue frio do distinto cavalheiro, você, sempre conduzidos por um fino mas severo código de conduta. Mais uma vez, duas hipóteses surgem:
a) o senhor armado da razão e da justiça contra a ignomínia limpa o sebo ao infeliz mafarrico;
b) apesar de tudo vivemos num universo estranho e você falece às mãos do estafermo.
Ora aqui, tanto numa situação como noutra, obtemos resultados que, nunca sendo satisfatórios para as duas partes contenciosas em simultâneo, serão ao menos palpáveis e factuais. No caso de você aniquilar o animal pode dizer-se que o senhor só por si seria um instrumento da selecção natural, eliminando da cadeia evolutiva genes nefastos e labregos – aliás, com a proibição dos duelos até à morte perdemos o único meio venerável de refinar a pool genética. No bizarro caso de no final quem ficar com a bala no bucho ser você, não desanime. Morreria um herói; morreria defendendo a sua honra e a da sua mulher e nada está acima dessa palavra puída. Pense também que com esse desfecho os filhos dela terão melhor pontaria o que, sendo obviamente uma vantagem evolutiva, fará de si um nobre mártir sacrificado em detrimento de uma geração menos desajeitada.
PS: É claro que para um duelo ser considerado válido não é necessário que nenhum dos contendores faleça, mas assim qual seria a piada?
Imagem: O Duelo de Yevgeny Onegin e Vladimir Lensky, Ilya Repin, 1899